A Estrada da Pedreira e o Estádio dos Eucaliptos

Dias atrás vinha descendo a Plinio Brasil Milano, da Carlos Gomes em direção à Auxiliadora.
 
O carro chacoalhava tanto que resolvi prestar atenção ao pavimento. E, para minha surpresa, entre os muitos remendos de centenas de buracos abertos e mal fechados com asfalto irregular, vi um antigo piso de concreto preservado, velho conhecido, que julgava extinto das ruas de Porto Alegre.
 
Bem junto ao antigo Posto Timbaúva, naquelas curvas em “S” que há na descida, o piso em chapas de concreto junto ao acesso do posto de gasolina (hoje sob a bandeira da BR Distribuidora) permanece lá, como colocado na época da pavimentação da Estrada da Pedreira, há mais de sessenta anos, como se chamava a Plínio Brasil Milano até então.  
 

 

 


Digo que o piso é velho conhecido porque a primeira empresa a importar uma máquina pavimentadora em chapas de concreto, no final dos anos vinte do século passado, foi a Dahne, Conceição & Cia*, fundada por três colegas engenheiros, um deles meu avô Ildo Meneghetti, muitos anos antes de aventurar-se em política e eleger-se prefeito de Porto Alegre e depois governador do Estado.
 
Lembro da história da aquisição dessa máquina devido à construção do Estádio dos Eucaliptos, do Internacional.
 
O Inter tinha em 1929 seu próprio campo arrendado, a Chácara dos Eucaliptos, na Azenha.
 
A situação não era nada boa. O clube estava atolado em dívidas e até o aluguel da chácara estava atrasado. Não tinha dinheiro nem para pagar a conta de água.
 
Situada no início da José de Alencar, a Chácara dos Eucaliptos pertencia ao Asilo da Providência. Tinha uma alameda de eucaliptos, que servia de estrutura para as arquibancadas de madeira, deixando-as na sombra.
 
Porém, a chácara fora colocada à venda por 40 contos. O Internacional, embora como arrendatário tivesse a preferência para a compra, não conseguiu levantar o capital necessário para a aquisição. 
 
O presidente da Federação Rio Grandense de Football  e ex-dirigente colorado Antenor Lemos presidiu uma reunião que deveria decidir os destinos do clube. O “jovem” Ildo Meneghetti era um dos presentes.
 
Antenor fez uma exposição da situação grave pela qual o Inter passava e concluiu propondo o encerramento das atividades, com a liquidação do clube.
 
Meneghetti, que até ali ouvira em silêncio, resolveu falar.  Indagou mais detalhes sobre a situação, perguntando se não haveria outra solução. Não. Não havia. Foi o que todo o mundo respondeu.
          

Antenor Lemos tinha sido presidente do Internacional de 1920 a 1922 e era o cartola mais influente da cidade em toda a década de 20. Talvez  tenha sido o primeiro instigador da rivalidade entre Grêmio e Internacional nos moldes em que existe até hoje.
 
A cada derrota do rival Grêmio, Antenor soltava foguetes, promovia festas, acirrando a rivalidade. Mesmo quando presidente, não raro provocava brigas e partia logo para o soco. Era considerado capaz de tudo.
 
Um ocasião, já como presidente da Liga Porto-Alegrense, percebeu que o Inter perderia uma votação por causa do asmático representante do Cruzeiro. Não teve dúvidas: distribuiu charutos entre os presentes. O asmático teve que sair da sala e não pode votar, havendo o empate. E Antenor, como presidente, usou o voto de Minerva para favorecer o Inter. Era um homem decidido, que se fazia respeitar. Tinha um vozeirão e sua presença dominava os ambientes.
 
Mas Meneghetti, embora apreciasse Antenor Lemos, era um dos que não queria aceitar a idéia da liquidação e conseqüente encerramento das atividades do Inter. Argumentou, tentou fazer sugestões e afinal disse que não concordava com aquela solução, achava que talvez valesse a pena fazer mais uma tentativa. Em sua opinião aquilo “era uma precipitação”. E disse que tinham a obrigação de achar uma solução que mantivesse o Internacional.

 
– Tu achas? – perguntou Antenor Lemos, ao “menino” que ousava discordar.

– É, eu acho, sim.

– Então assume! – desafiou.       
                    
 Foi assim Meneghetti assumiu a presidência do Inter. Tinha 33 anos de idade.

 
Por uma gentileza do jornalista Cláudio Dienstmann, consegui uma cópia da ata da primeira sessão do Conselho Deliberativo, lavrada de próprio punho por Meneghetti, ocorrida em quinze de fevereiro de 1929, na sede da rua dos Andradas n.º 413,  onde está registrada a situação em que o clube se encontrava:
                                                
  “uma dívida de vinte contos de réis a pagar, não tendo material desportivo algum, estando o campo atual a precisar de uma reforma geral, o que não era conveniente, pois era de conhecimento de todos  que a tradicional ‘Chácara dos Eucalyptos’ tinha sido vendida ao sr. A. Laporta.” 

 
O Conselho Deliberativo autorizou o novo presidente a contrair um empréstimo de dez contos de réis, “a juros e prazos os mais convenientes possíveis”, para atender as despesas mais urgentes e começar a providenciar a aquisição de um terreno “onde pudesse instalar sua praça de desporto.”
 

Logo foi encontrada uma área cuja topografia era favorável,  até mesmo para a construção das futuras arquibancadas devido a uma elevação existente. A área era de propriedade do Banco Nacional do Comercio, que pretendia loteá-la. O preço era 220 contos de réis. Um dinheiro enorme. Negociando com a Companhia Territorial, subsidiária do banco, Meneghetti propôs um parcelamento e o negocio foi fechado.

 Mas ainda havia os aluguéis atrasados da Chácara dos Eucaliptos. Meneghetti procurou então o responsável pela loteadora que adquirira a área e propôs fazer a pavimentação das ruas que fariam parte do futuro empreendimento em troca da dívida. Foi aí que entrou a história da pavimentadora que a Dahne, Conceição havia adquirido.
 
 Proposta feita, o homem gostou:
  
– Muito bem, a proposta é boa. Mas qual é a minha garantia? – perguntou.
 
– A garantia é a minha palavra. – respondeu Meneghetti. O  homem olhou sério, surpreso com o atrevimento do jovem sentado à sua frente e decide:

 
– Está bem. Gostei de ti, guri. Negócio fechado.   
           
Dois anos depois o acordo estava integralmente cumprido.

 
Para pagar o terreno e financiar as obras do novo estádio foram lançados 500 títulos de sócios proprietários. Na Assembléia Geral Extraordinária de 31 de janeiro de 1929, foram propostos e aprovados os novos estatutos, redigidos e lavrados à mão por Meneghetti, criando uma nova categoria de sócios, inicialmente quinhentos, com quotas de quinhentos mil réis cada, pagáveis em vinte prestações. 
 
As obras são, então, iniciadas, com a Dahne, Conceição executando a terraplanagem da área do futuro Estádio dos Eucaliptos sem cobrar nada do clube.

 
É iniciada também, com muita dificuldade, a venda entre os torcedores dos quinhentos títulos. Acabam vendendo apenas 85. O próprio Ildo assumiu os demais.  Mais tarde, com o avanço das obras, foi feita uma nova emissão.
 
E assim, com muitas dilatações de prazo nos pagamentos do terreno, em junho de 1931 o Internacional inaugurou o seu estádio. Ildo Meneghetti, que assumiu a presidência em 1929 para permanecer pouco tempo, acabou ficando no cargo por cinco anos, de 1929 até 1933. Colocou uma fortuna no clube, que anos depois o escolheria como Patrono. 
 
E Antenor Lemos dá nome a uma das ruas das cercanias do velho Estádio.

*em parte desse  texto utilizei informações dos originais do  livro “Baile de Cobras – A Verdadeira História de Ildo Meneghetti” – em edição –  que deverá ser lançado no ano que vem.

 

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9 Respostas to “A Estrada da Pedreira e o Estádio dos Eucaliptos”

  1. Carlos Alberto Says:

    Mas que bela história!

  2. Thiago Oliveira Says:

    Parece muito com a dedicação do Ricardo Teixeira para construir os estadios da copa do mindo de 2014. Inclusive a mesma margem de lucro

  3. Enio Meneghetti Says:

    Obrigado pelos comentários. Que bom que gostaram.

  4. Guilherme Mallet Says:

    Ênio! Não citaste que a Rua Germano Hassloker (onde ficava a chácara dos Eucaliptos), tem o concreto da pavimentação da Dane & Conceição até hoje.

    Mas é forçoso dizer que o Antenor Lemos, um dos maiores fanáticos pelo Inter defendesse a liquidação do clube assim. É uma história que não fecha.

    Tem ata registrando isso?

    • Enio Meneghetti Says:

      Prezado Guilherme, não há registro em ata, embora fosse uma história bastante conhecida dos colorados antigos. Mesmo porque, em atas não se costumam registrar detalhes assim, salvo em casos de litígios graves, o que não foi o caso. Mas há vários relatos do fato. Um deles está no blog http://bolavermelho.blogspot.com/2008/10/segundo-uma-matria-de-carla-wendt.html
      Obrigado pelo comentário. Um abraço.

      • Guilherme Mallet Says:

        Ênio, o histórico do Antenor Lemos é que fui um fundador do Inter que, segundo seu amigo Cid Pinheiro Cabral, tinha ojeriza ao racismo. Além disso, sua atuação política no futebol foi marcada por duas lutas. Uma o Internacional. A segunda, a defesa do amadorismo. O amadorismo romântico dos times formados por sócios, sendo algo moralmente inaceitável o jogador mercenário. A história do Antenor Lemos é identificada com esse período em que o profissionalismo marrom era combatido pela Federação que ele presidia.

        Seu descenso e ostracismo coincidiu com o começo dos anos 30 quando o Internacional teria passado a praticar esse tipo de profissionalismo marrom.

        E nesse período que cresce o nome de Ildo, de uma nova geração, que preocupada com a competitividade não nutria os mesmos dogmas daquela primeira geração de dirigentes.

        Me incomoda essa história de pedido de encerramento das atividades por não haver qualquer registro. Os que existem são tão fidedignos como a origem do nome do clube que por anos foi associada à Internazionale de Milão sem o devido questionamento.

        Antenor foi um grande colorado e que defendeu o romantismo de nosso clube. Enquanto outros times pagavam ou davam emprego para jogadores, os nossos jogavam exclusivamente por amor. Mas a lógica da profissionalização e da competitividade exigia que o Internacional também flexibilizasse essa cultura.

        A figura de Antenor Lemos é emblemática das primeiras décadas do Inter. Por isso não o julgo, questiono essas acusações e tento entender sua história e seu tempo.

        Abraço.

      • Enio Meneghetti Says:

        Bem Guilherme, o relato que fiz no post é o que ouvi do próprio protagonista. Meneghetti faleceu em 1980, quando contava eu com 23 anos de idade e esta foi uma das muitas histórias que ouvi dele. O link que indiquei reproduz – até onde sei – com fidelidade a questão da proposta de encerramento das atividades do clube.
        Mas é importante ressaltar – e inclusive ressalto isso no artigo do blog – que Meneghetti apreciava Antenor Lemos. O que não significava que não pudesse divergir dele em alguma questão. Ambos tiveram duas divergências importantes: a primeira quanto a proposta da liquidação do clube. E outra quanto a extinção da Lei dos Estágios, que impedia a profissionalização. Os clubes haviam sido criados a partir da vontade dos dirigentes de disputar as partidas. E a Lei dos Estágios impedia contratação de jogadores. Na visão de muitos na época, como Ildo Meneghetti, a solução para a continuidade e sustentáculo dos clubes estava na profissionalização do esporte. Se isso foi bom ou ruim, a realidade está aí para demonstrar.
        Um livro que traz boas informações do período, inclusive um capítulo sobre Antenor Lemos, a extinção da Lei dos Estágios, a escolha do nome do Inter, além de várias informações interessantes, é “Na Sombra dos Eucaliptos”, de Carlos Lopes dos Santos. Ele registra também, que no dia da inauguração do “Eucaliptos”, em 1931, Meneghetti entregou solenemente a Antenor Lemos os títulos de números 01 a 05 de “sócio proprietário”, adquiridos por ele no esforço para construção do novo estádio.
        Fraterno abraço!

  5. Guilherme Mallet Says:

    Grande, Ênio.

    Nesse caso, tiveste então acesso a uma fonte primária de informação. Realmente o Dr. Ildo foi fundamental para a profissionalização e consequente competitividade do Clube. O Antenor Lemos provavelmente não queria era ver o Clube entrando nesse novo modelo.

    Do Carlos Lopes dos Santos, te indico o segundo livro dele, chamado de “Gigante da Beira-Rio”. É uma continuidade do “Na Sombra dos Eucaliptos”, mais completo.

    Aqui tenho fotos da pavimentação no local da antiga Chácara.
    https://picasaweb.google.com/117184566577705995014/ChacaraDosEucaliptos

    Sabes de alguém que saberia descrever a antiga Chácara. Localização do campo, entrada, etc?

    Abraço.

  6. Enio Meneghetti Says:

    Guilherme, muito obrigado pelas fotos. Estão perfeitas, mostrando o mesmo pavimento remanescente da antiga “Estrada da Pedreira” e idêntico ao de várias outras vias que posso me lembrar, como a antiga pavimentação da av. Carlos Gomes, que era exatamente a mesma.
    Vou tentar achar para adquirir o “Gigante da Beira-Rio” do Carlos Lopes dos Santos. Grato pela dica.
    Infelizmente todos os remanescentes da Chácara já faleceram. Qualquer descrição agora teria de ser a partir de relatos, o que nem sempre é exato. Como fotos daquela época são raras, vou ficar te devendo essa. Abração!

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