“Naquela noite, sugeriram a Joaquim Barbosa divulgar melhor sua produção técnica. Outro ministro ouviu a conversa. Em uma roda, da qual participavam cinco colegas, o assunto virou piada.
– Olha o que ouvi agora: sugeriram ao Joaquim mostrar sua contribuição técnica no Supremo.
E todos caíram na risada.”
Trecho do artigo publicado na revista eletrônica Consultor Jurídico, de autoria de Marcio Chaer.
Segue a íntegra:
“Em uma noite calorenta de Brasília em maio de 2005, um jornalista pôs-se a dar conselhos a Joaquim Barbosa, então ministro do Supremo Tribunal Federal. Nos seus dois primeiros anos na corte, Joca, como o chamam os mais próximos, mostrava-se perdido nas funções.
Ele ouviu que precisava encontrar seu espaço no tribunal. Mostrar a que veio.
Por essa época, cada voto era um suplício. Até a leitura da decisão, preparada pela assessoria, a coisa ia bem. Mas quando chegava a hora dos costumeiros questionamentos dos demais ministros ao relator, complicava.
Atônito, sem respostas, ele se punha a reler o voto — que não contemplava a informação solicitada. Uma nova pergunta se seguia de nova leitura do voto.
Até que um ou outro colega mais paciente, ou menos cruel, passou a vir em seu socorro.
– Vossa Excelência, então, quanto à preliminar suscitada, acolhe os embargos, certo?
Ao que Joaquim murmurava algo em sentido positivo. Outro completava:
– Quanto ao mérito, o relator considera prejudicado o pedido, é isso?
Com uma variação ou outra, os votos iam sendo acochambrados até se dar formato a uma decisão inteligível ou minimamente satisfatória.
Naquela noite de maio, quando se sugeriu a Barbosa divulgar melhor sua produção técnica, outro ministro ouviu parte da conversa. Em outra roda, da qual participavam cinco colegas dele, o assunto virou piada.
– Olha o que ouvi agora: sugeriram ao Joaquim mostrar sua contribuição técnica no Supremo.
E todos caíram na risada.
A pelo menos um amigo, Joaquim Barbosa confessou sua vontade de abandonar o tribunal. Mas foi aconselhado a desafiar e “peitar” a estrutura.
No campo do Direito ele não tinha como se destacar, estava claro. Mas poderia puxar os colegas para outro ringue em que eles não tivessem como superá-lo.
No livro Como a picaretagem conquistou o mundo, o jornalista britânico Francis Wheen analisa a receita da construção de personagens que, com largas doses de demagogia e populismo chegaram a altos cargos, como a presidência dos Estados Unidos ou ao cargo de primeiro-ministro do Reino Unido.
Em uma das resenhas dessa obra, o crítico Rafael Rodrigues cita o teatrólogo Nelson Rodrigues, que disse que esses personagens tomaram o lugar dos melhores a tal ponto que se criou “uma situação realmente trágica: ou o sujeito se submete ao idiota ou o idiota o extermina”.
É claro que Joaquim Barbosa não se enquadra no perfil. Mas o livro é pedagógico no sentido de evidenciar como a construção de um personagem, no mundo da política, do jornalismo, das artes ou das finanças, possibilita o sucesso sem que a celebridade artificial tenha realmente o estofo para pontificar no píncaro a que foi alçado.
Assim como nos primeiros anos em que ralhava com seus assessores por não preverem as perguntas que lhe seriam feitas em Plenário, o ministro manteve-se até o fim em estado de guerra com quase todos os colegas.
Aperfeiçoou-se no uso da comunicação instantânea pelo laptop de tal forma que outros ministros resolveram não levar mais o equipamento para a bancada.
Mas isso aliviou bastante o que considerava uma prática maldosa dos colegas: as tais perguntas embaraçosas.
Em sua passagem pelo STF, Joaquim Barbosa raramente recebeu advogados que lhe solicitavam a oportunidade de oferecer subsídios para suas decisões. Essa tarefa era penosa para ele da mesma forma que a interlocução com os ministros em Plenário. A sua explicação era que considerava esse tipo de “conluio” indecoroso.
Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, o também ministro aposentado Cezar Peluzo, aponta outro motivo, mais prosaico, que cabia numa só palavra: insegurança.
Na mesma entrevista, Peluzo contrariou outra crença disseminada largamente por Barbosa: o de que suas ausências no plenário e sua impaciência com as sessões deviam-se a problemas de saúde.
O sucesso de Barbosa, como relator da Ação Penal 470, o chamado mensalão, lustrou a imagem externa do ministro. Mas junto à elite da comunidade jurídica foi motivo apenas de desconsolo.
As poucas vozes que ousaram “chutar a santa” canonizada pela opinião pública, sedenta de vingança contra a comunidade política em geral e contra o PT em particular, enfrentaram o risco aventado por Nelson Rodrigues e as vaias da plateia.
Como presidente do Conselho Nacional da Justiça, originalmente apelidado de órgão de controle externo do Judiciário, Joaquim Barbosa viveu um paradoxo lógico entre o substantivo e o adjetivo. Durante toda sua gestão, foi o mais feroz crítico do sistema judicial e seus protagonistas.
Mas não apresentou ou aprovou uma única proposta que corrigisse as distorções e deformações elencadas por ele mesmo.Na análise de pessoas que acompanham a carreira de Barbosa, o seu portfólio como procurador da República (em que passou dez de vinte anos em licença), como ministro e como presidente do STF e do CNJ têm igual relevância. A sua contribuição técnica, jurídica e institucional deixam a mesma marca nos três órgãos.
Por fim, depois de onze anos de embates e desinteligências, ao menos se sabe que Joaquim Barbosa e os ministros do Supremo, no plano institucional, concordaram em alguma coisa.”
Por Márcio Chaer
Pelo link acima, acesse a publicação original e também a resposta do ex ministro.
Tags: Consultor Jurídico, Joaquim Barbosa, Marcio Chaer, STF
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